O samba é um dos maiores símbolos culturais do Brasil. Os estudiosos do gênero musical dizem que suas raízes ancestrais advêm dos povos bantos do Congo e de Angola, traficados em grande escala não só para o Rio de Janeiro, mas para todo o país durante o período colonial. A história desse ritmo musical tão vinculado à identidade brasileira seria, provavelmente, muito diferente se os africanos de origem nagô – vindos da Costa da Mina, região onde Gana, Togo, Benim e Nigéria estão hoje localizados – não tivessem chegado, em massa, em terras cariocas, durante o Império e os primórdios da República.
É verdade que já havia nagôs no Rio desde o século XVIII, embora em quantidade infinitamente menor que os bantos. O principal destino deles sempre foi o porto de Salvador e demais localidades do Nordeste. Mas, com o crescimento da demanda por mão de obra para explorar o ouro de Minas Gerais, alguns navios vindos da Costa da Mina passaram a atracar em território fluminense. Os nagôs, também chamados genericamente de sudaneses, eram oriundos de várias etnias, entre elas os jejes, iorubás, haussás, mahis e mandingas. O termo nagô, aliás, é igualmente bastante genérico, pois inclui nações com grande diversidade linguística (e muitas vezes inimigas na África), embora a maioria partilhasse de uma cultura similar e de uma religiosidade islamizada.
O grande êxodo desses africanos para o Rio de Janeiro – em ritmo jamais visto antes na história – começou com a Revolta dos Malês, que sacudiu a Bahia em 1835. O levante, organizado pelos africanos muçulmanos, tinha como objetivo o fim da imposição do catolicismo, a libertação dos escravos e a tomada do poder político da província. O governo de Salvador respondeu aos rebeldes com atos duríssimos, e os proprietários baianos de escravos passaram a temer a “índole rebelde” dos cativos oriundos da Costa da Mina. Fora isso, a queda contínua do preço do açúcar no mercado internacional, a partir de 1830, levava os senhores de engenho a buscar novas formas de enfrentar a crise. Com a Revolta dos Malês, a solução encontrada foi vender, em grande quantidade, seus escravos para a Corte carioca.
Os negros libertos da Bahia também sentiram a crise econômica e o forte aumento da repressão contra os africanos. Muitos voltaram para seus países – dando início ao fenômeno dos escravos retornados – e tantos outros migraram para a capital do Império. A maioria dos alforriados baianos que vieram para o Rio de Janeiro, segundo o historiador Carlos Eugênio Líbano Soares, era composta por negras comerciantes, cuja vocação para as vendas tinha origem nas redes comerciais estabelecidas na África. Paramentadas com seus turbantes islâmicos e panos da Costa atravessados no ombro, elas já eram, na época, personagens típicas das ruas de Salvador. Uma vez no Rio, tornaram-se quitandeiras, muito embora a função não fosse de total exclusividade delas.
A chegada massiva dos negros baianos, no Rio, impactou o panorama étnico e cultural carioca. Logo eles se articularam em uma comunidade no entorno do cais do porto, nas ruas e ladeiras vizinhas à Pedra do Sal, onde o aluguel era mais barato e os homens podiam ser empregados como estivadores. Lá, moravam em velhos e deteriorados casarões coloniais – muitas vezes abandonados –, que passaram a ser chamados de zungus. Estes se diferenciavam dos cortiços – onde cada família morava em um cômodo distinto – pelo aspecto coletivo, tribal e comunitário. Não passou muito tempo para virarem um centro de encontro de crioulos (negros nascidos no Brasil) e de africanos de diversas origens.
Desse contato nasceu, entre outras coisas, a umbanda carioca, uma manifestação sincrética dos cultos bantos com o panteão de orixás do candomblé baiano e outras matrizes religiosas. Mas o mais impactante fruto dessa convivência foi, provavelmente, o nascimento da comunidade que ficou conhecida como Pequena África, que se tornaria célebre na virada para o século XX, pela riqueza de manifestações e simbioses culturais que dali passaram a emergir.
Candomblé, samba e carnaval
A primeira casa de candomblé do Rio, que se tem notícia, foi a de Bamboxê, fundada por um africano que veio da Bahia, em meados do século XIX, e retornou para a África logo após a Abolição da Escravidão. Mas o candomblé tido como o seminal da cidade é a casa do nagô João Alabá, que ficava no caminho entre a zona portuária e a Cidade Nova e cujas filhas de santo tiveram papel crucial na articulação e no desenvolvimento da cultura negra carioca.
Entre as tantas filhas de santo que fizeram história na cidade, podemos citar tia Amélia, mãe do violonista e compositor Donga, que gravou Pelo Telefone, tido como o marco inicial do samba no Brasil; tia Bebiana, que, na década de 1880, organizou a concentração dos desfiles dos ranchos e pastoris no antigo Largo de São Domingo, em frente ao Cemitério dos Escravos (onde fica, hoje, a esquina das avenidas Passos e Presidente Vargas); e a memorável tia Ciata, a líder negra cuja residência, na Praça Onze, se tornou o centro de convergência da cultura popular do Rio pós-abolicionista, e a partir de onde os ranchos dos afrodescendentes passaram a desfilar.
A produção de festas culturais já era tradicional entre os negros baianos. Em Salvador –
e também no Rio, embora em escala menor – grande parte dos cativos se organizava em irmandades cristãs, que constituíam verdadeiros espaços de barganha entre escravos e senhores. De um lado, os escravocratas amenizavam o senso de revolta dos africanos, permitindo que eles adorassem os santos católicos e usufruíssem de certa liberdade nos momentos em que se dedicavam ao culto e ao trabalho na instituição. De outro, os negros aproveitavam o espaço para construírem laços de solidariedade e praticarem suas tradições culturais nos dias de celebração do calendário religioso de seus senhores. As festas constituíam, assim, verdadeiros ambientes de resistência e de afirmação da cultura negra.
No Rio imperial e nos primórdios da República, as manifestações de tradição africana continuavam fortemente reprimidas. Mas a história de afirmação da identidade pela resistência cultural já havia se tornado uma marca dos nagôs baianos. Foi com esse espírito que tia Ciata, para driblar a polícia, começou a organizar pagodes em um colégio próximo à Praça Onze, onde morava. Segundo o Dossiê das Matrizes do Samba no Rio de Janeiro, feito pelo Centro Cultural Cartola, o termo “escola” passou a refletir as expectativas dos negros, que ganharam estabilidade a partir do momento em que os ranchos passaram a se reorganizar como escolas de samba e a dar um nexo de coletividade nas várias comunidades que começavam a crescer nos morros e subúrbios cariocas. Ainda segundo o Dossiê, tais expectativas eram partilhadas, inclusive, pelo grupo de músicos liderados por Ismael Silva, do morro do Estácio, lugar ao qual os pesquisadores atribuem o nascimento do samba urbano de cortejo, mais adequado para os agrupamentos carnavalescos desfilarem. E foi assim que o gênero musical ganhou fôlego no Rio de Janeiro e se transformou em patrimônio popular e cultural não só da cidade, mas de todo o país.